O que você lerá neste texto sobre a realidade política, social e institucional boliviana não me foi contado por ninguém. Este relato é fruto de investigação que fiz em viagem de negócios que ora empreendo à Bolívia.
Escrevo de Santa Cruz de la Sierra, quase ao fim de uma viagem de duas semanas. Nos últimos dez dias, aproveitei o tempo livre de que pude dispor para assistir programas de TV sobre política, ler jornais, ouvir pessoas, ir aos bairros pobres da periferia de Santa Cruz (no fim de semana), enfim, aproveitei esta viagem para me aprofundar ao máximo numa questão que chega ao Brasil de forma extremamente deturpada e/ou mutilada em razão dos mesmos interesses obscuros que têm feito com que uma parcela exígua dos bolivianos, a elite, venha dando um show ridículo de burrice, de intolerância e de egoísmo que beiram a bestialidade, por mais branca, instruída e rica que essa elite seja.
A elite, a mídia e o grande empresariado bolivianos estão tentando reproduzir o que seus congêneres venezuelanos vêm fazendo há anos na Venezuela, ou seja, tentam derrubar ou, na pior das hipóteses, paralisar um governo democraticamente eleito e que apenas tenta pôr fim à miséria de dar dó em que vivem índios que constituem a quase totalidade da população boliviana.
Alguns fatos sobre a Bolívia que é preciso saber para bem entender o que se passa aqui. Este é o país mais pobre da América do Sul. Os índios quéchuas, aymarás e outros, mais uma boa parcela de mestiços, constituem uns 90% da população. Destes, outros 90% vivem, em grande parte, na pobreza, e a maior parte, na miséria. Um contingente expressivo dos índios bolivianos ganha cerca de um dólar por dia. A maior parte dos índios não tem rede de esgoto, educação minimamente aceitável e padece de doenças que desapareceram na maioria dos países de civilização média. A maioria indígena está concentrada em cidades da Cordilheira dos Andes como La Paz, Sucre, Cochabamba, Oruro, Potosi etc.
Os habitantes indígenas das cidades do Altiplano (da Cordilheira) são conhecidos como “collas”, e os da planície, da região conhecida como “Media Luna” (constituída por Santa Cruz de la Sierra, Pando, Tarija e Beni), são conhecidos como “cambas”. Há uma rivalidade crescente e explosiva entre “collas” e “cambas”. Eles se odeiam, ainda que muitos indígenas vivam na região da “Media Luna” segregados, sem direitos, oprimidos e odiados. Os “cambas” dividem-se entre uma minoria branca e rica, majoritariamente descendente dos conquistadores espanhóis que não se miscigenaram com os quéchuas, aymarás e outros, e os índios (“collas”) submissos que formam um enorme exército de serviçais dos ricos da região de Santa Cruz. Os “cambas” índios e mestiços, em grande parte, votam e emulam os discursos de seus patrões, mas, muitas vezes, da boca para fora, como mostram os resultados eleitorais das eleições mais recentes, nas quais os “cambas” índios e pobres dividiram-se, pendendo levemente para as posições políticas da elite.
Logo nos primeiros dias aqui em Santa Cruz passei a acompanhar com grande atenção a mídia local. Os grandes canais de TV e o principal jornal da direita branca e rica, tais como as TVs Unitel, do grupo agropecuário Monastérios, Red Uno, do grupo de supermercados Kuljis, Sitel, da cervejaria dos Fernandez, Pat, do grupo dos Daher (distribuidores Sony na Bolívia) e o jornal El Dia. Foi aí que me dei conta de que a América Latina está submetida toda ao mesmo processo, no qual as elites midiáticas dos países da região - todos transbordando de pobreza e desigualdade - tentam, valendo-se do controle que exercem sobre os meios de comunicação, impedir que as grandes massas mestiças, negras e índias, mantidas na ignorância, na pobreza extrema e vivendo em condições indignas, votem em causa própria, elegendo governos comprometidos com a promoção de distribuição de renda e de oportunidades.
Uma digressão : o que vemos fazer a mídia brasileira não chega a ser um décimo do que fazem as mídias de países nos quais foram eleitos governos dispostos a enfrentar as elites e suas mídias com maior decisão. São países como Bolívia, Venezuela, Equador etc, os quais venho visitando há mais de uma década. Porém, assim mesmo, posso garantir que o Brasil está trilhando o mesmo caminho que eles. Só que, devido a ser um país muito mais complexo e devido ao fato de que Lula parece ter optado por uma transformação mais lenta e contemporizadora, a mídia brasileira, por incrível que possa parecer, porta-se com maior comedimento do que suas congêneres de outros países latino-americanos.
De volta à Bolívia. Quem chega a Santa Cruz e começa a assistir as grandes TVs locais, chega a ficar com medo. Nos programas em que os brancos ricos vertem sua baba reacionária contra Evo Morales, só se fala em “guerra civil”, “desobediência civil” e “autonomia”. O discurso que predomina na mídia dos “cambas” brancos e ricos dá a impressão de que o que ocorreu na Venezuela, por exemplo, ocorrerá na Bolívia em pouco tempo. O ódio da elite “cruceña”, no entanto, não nasceu com a chegada do índio Evo Morales ao poder.
Os “cambas” brancos e ricos – que não passam de um punhado que não dá dez por cento dos bolivianos – odeiam os “collas” desde sempre. Horrorizam-se com seus trajes típicos – por exemplo, das mulheres gordinhas, baixinhas, de pele escura, que usam xales com motivos indígenas, saias compridas e rodadas e chapéus-coco -, com suas bocas desdentadas, com seus narizes aduncos... Enfim, gente “feia”, para os brancos ricos da região da rica “Media Luna”. E horrorizam-se mais ainda ao ver o ministério de Evo Morales, majoritariamente composto por “collas despreparados”, no dizer da elite. O ódio deles, então, tem raízes históricas. A chegada de um dos objetos de sua execração ao poder apenas exacerbou um ódio que já existia, porém embebido em mero desprezo.
Mas há outros fatores para o ódio dos “cambas” brancos e ricos. Como alguns já devem ter adivinhado, é o dinheiro. Evo seguiu o exemplo de Hugo Chávez, que passou a canalizar o dinheiro do petróleo que abunda em seu país para lograr feitos como extinguir o analfabetismo na Venezuela depois de décadas em que a elite branca de lá chegava a usar esse dinheiro até para importar água mineral de Miami, ou o exemplo de Lula, que despertou o ódio da elite brasileira ao adotar medidas que estão levando negros e índios às universidades e permitindo que famílias pobres se alimentem, vistam-se e vivam melhor graças a programas como o “Bolsa Família” ou o “Luz Para Todos”.
A exígua elite boliviana contava com o referendo de dezembro do ano passado sobre a “autonomia departamental”, ou seja, autonomia econômica e administrativa de cada um dos nove Estados do país. Esse referendo foi proposto pelo presidente anterior, Carlos Mesa, para ocorrer no fim de 2006. A tal “autonomia” teria o condão de manter em Santa Cruz os recursos que Evo vem “torrando” com os “collas”, que são, apenas, três quartos dos bolivianos. O que aconteceu: por margem apertada, a “autonomia” venceu nas regiões da “Media Luna”, mas perdeu no conjunto da Bolívia. Ainda assim, devido a peculiaridades da redação do referendo, seria possível alguns “departamentos” se tornarem autonômicos e outros não.
Antes de prosseguir, devo relatar um fato importantíssimo para a compreensão desse problema. A Bolívia tem hoje funcionando uma Assembléia Nacional Constituinte na capital do país, que, ao contrário do que se pensa, não é La Paz e, sim, Sucre. La Paz é apenas a sede do governo boliviano. Bem, o governo central não desrespeitou o resultado do referendo, ainda que na autonomia pretendida pelos “cambas” brancos e ricos estejam absurdos como uma espécie de “ministério de relações exteriores” para os “departamentos” autonômicos e outras sandices pretendidas por eles que significariam a virtual separação da região da “Media Luna” do resto da Bolívia. Evo apenas determinou que a regulamentação da autonomia terá que ser feita pela Assembléia Nacional Constituinte. Supõe-se, por óbvio, que não se trata de nenhum absurdo pretender que uma medida dessa magnitude passe por um conclave de parlamentares constitucionais eleitos para redigir a nova Constituição do país.
Os “cambas” brancos e ricos não aceitam. Começaram a falar, ensandecidos, em “guerra civil” e em “desobediência civil”, o que seja, os governos da “Media Luna” não repassarem impostos ao governo central e desobedecerem suas determinações. Para que se tenha uma idéia da surto alucinado que tomou conta dessa gente, chegaram a ir aos EUA para tentarem falar com o presidente George Bush. Obviamente que não foram recebidos pelo simples fato de que o povo boliviano elegeu Evo Morales para representá-lo. Depois foram à ONU e também deram com a cara na porta.
A tal “guerra civil” que pretendem os “cambas” brancos e ricos, no entanto, não passa de balela. Apesar de terem conseguido que alguns de seus serviçais “collas” os ajudassem a vencer o referendo sobre a autonomia – mas não a eleição dos constituintes – por margem apertadíssima, eles não têm condições de desencadear as grandes, porém amplamente minoritárias, passeatas da elite venezuelana. Aliás, se conseguissem provocar a tal guerra civil, seriam trucidados. As forças armadas bolivianas são compostas, obviamente, pelos odiados “collas” e não estão nem aí para os xiliques das madames “cambas”, que agora se congregaram num grupo de peruas que se auto-intitula “Mujeres de Septiembre”, que promove manifestações de meia dúzia de gatos pingados e brada contra o “comodismo” da maioria esmagadora dos “cambas”, que não lhes engrossa os atos contra o governo.
Este texto tem por objetivo levar ao Brasil um pouco da realidade latino-americana que estou acompanhando de perto e cada vez mais graças ao meu trabalho, que é percorrer a América Latina de ponta a ponta para vender meus produtos. Em nosso país sabemos muito pouco sobre nossos vizinhos porque à mídia não interessa a integração latino-americana. Dividir para governar é o lema da oligarquia latino-americana. Ações no sentido da que empreendi nesta viagem têm o sentido de diminuir a verdadeira censura que os oligarcas da mídia brasileira nos impõem. Talvez eu não faca diferença, mas estou tentando fazer minha parte. Se vocês quiserem, façam a vossa. Como? Por exemplo, difundindo este texto. ( Escrito por Eduardo Guimarães - edu.guim.blog.uol.com.br)
quarta-feira, 20 de junho de 2007
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