terça-feira, 20 de maio de 2008

Instabilidade sul-americana e o "diferencial" brasileiro

Interessante leitura publicada no Blog Cidadania.com, do Eduardo Guimarães.

Olhados isoladamente, os países sul-americanos que, nos últimos anos, optaram por governos de esquerda aparentam estar mergulhados em meros conflitos locais entre progressistas e conservadores. Ao menos é assim que as mídias do continente os têm retratado, o que, à maioria das pessoas, parece produto de embates ideológicos naturais e históricos.

As próprias análises mais aprofundadas da mídia alternativa não explicam ou enveredam por hipóteses mais concretas sobre a origem dos problemas. O que parece que ela diz é que a origem de tudo seria a ideologia e, nesse contexto, as idiossincrasias norte-americanas.

Conhecendo a realidade dos países nossos vizinhos, porém, o que se pode deduzir é que o processo que ocorre em bloco na América do Sul deriva da desigualdade generalizada que, na América Latina, está entre as maiores do mundo, perdendo somente para a da África, onde castas se mantêm vivendo nababescamente às custas da miséria exacerbada da quase totalidade das populações. Nos países africanos, contudo, não há, como na América Latina, uma origem racial na desigualdade, com exceção da África do Sul.

As políticas redistributivas de alguns países sul-americanos, no entanto, têm sido combatidas com tentativas de desestabilização mais ou menos intensas, de acordo com a intensidade da disposição de cada governo de atacar essas desigualdades e, assim, contrariar os detentores locais da parte do leão das riquezas.

Em países como Argentina, Chile e Uruguai, três dos oito países sul-americanos que elegeram governos de esquerda, o processo de redução das desigualdades tem sido mais tranqüilo e a oposição da mídia, mais civilizada. Não se tem notícias de grandes crises políticas que tenham chegado perto de levar à deposição dos governos desses países, apesar de movimentos isolados como o do agronegócio argentino, ocorrido recentemente, mas que diminuiu de virulência, à diferença do que acontece em outros desses oito países, nos quais, em quatro, a situação é mais tensa, e no quinto restante, ainda é cedo para saber que rumo as coisas tomarão.

Esses cinco países restantes são Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai e Venezuela. Estes, dividem-se, de acordo com seus embates entre os governos de esquerda e as direitas locais, em três grupos.

Brasil e Equador integram o grupo dos países em que a situação é mais grave do que na Argentina, no Chile e no Uruguai, mas bem menos grave do que as situações do grupo mais crítico, composto por Bolívia e Venezuela, nos quais processos de ruptura institucional já tiveram ou estão tendo curso. E o Paraguai, obviamente, é o país de situação ainda indefinida, apesar de que é possível prever que essa situação irá se agravar. Afinal, a gravidade da concentração de renda, por lá, provavelmente só perde para a da Bolívia e a do... Brasil, o qual, aparentemente, tem uma situação política menos complicada do que a dos vizinhos.

Se eu disser, no entanto, que a gravidade da confrontação de classes - e é disso que se tratam, no fim das contas, os conflitos nos países citados - é maior no Brasil do que até numa Venezuela, em que tentativa de golpe de Estado foi desfechada há quatro anos, ou numa Bolívia, onde um processo separatista explosivo está em curso e pode se converter numa guerra civil se a direita local decidir, além de tentar montar um estado paralelo, montar um exército paralelo, dirão que estou por fora, mas se a análise se der com calma, poder-se-á ver um diferencial importantíssimo que faz do Brasil um país em que as instituições correm grave risco no caso de se tentar implementar um processo de redução da desigualdade mais efetivo e célere, como fizeram os países com situação política supostamente mais instável.

Nos países em que, supostamente, a confrontação político-ideológica é mais grave, ou seja, na Bolívia e na Venezuela, ou no Equador, onde o governo de esquerda tem problemas externos, com a fronteiriça Colômbia e com os EUA, mas goza de grande poder internamente, tendo praticamente destruído a oposição eleitoralmente na eleição de uma Assembléia Nacional Constituinte no ano passado, e muito mais na Argentina, no Chile e no Uruguai, onde a mídia ruge mais baixo e a elite se comporta melhor, até por conta das menores desigualdade e pobreza, bem, apesar de tudo isso os militares de todos esses países adotaram uma linha estritamente legalista.

Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa podem até ter oposição e mídia mais virulentas contra si, mas são apoiados incondicionalmente pelas forças armadas. No Chile, na Argentina e no Uruguai, aliás, os crimes das ditaduras dos anos 1960 e 1970 começam a ser punidos e os militares têm chegado até a fazer meas-culpas. E, no Paraguai, ainda não se sabe como eles se comportarão. O Brasil é o único desses países em que os militares ainda rugem e fazem coro com a direita.

Nos últimos anos (inclusive neste), os militares brasileiros têm feito desaforos para o governo. Recentemente, no caso dos conflitos na reserva indígena Raposa / Terra do Sol, as declarações de chefes militares chegaram a soar como ameaça ao governo do país. Hoje mesmo, os militares declararam que "não pretendem desempenhar o papel de guardas florestais" naquela região. Um absurdo, pois eles não têm a prerrogativa de dizer que missões pretendem ou não aceitar, pois a competência final sobre suas missões é, em última instância, do presidente da República, que, constitucionalmente, é o chefe supremo das Forças Armadas.

Como se não bastasse o fato de que os militares brasileiros, diferentemente do que acontece em qualquer dos outros países sul-americanos em que a esquerda chegou ao poder, permanecem sofrendo de comportamentos golpistas, temos ainda uma Suprema Corte de Justiça que vem sendo presidida por aliados políticos da oposição conservadora, gerando insegurança jurídica quanto a decisões que eventualmente viabilizem processos golpistas.

Por incrível que pareça, o diferencial brasileiro na instabilidade sul-americana é o de que neste país temos as condições mais "adequadas" para que um processo de ruptura institucional tenha curso, via, por exemplo, um golpe de Estado, que, novamente, seria desfechado pela direita contra um governo de esquerda sendo amparado pelos militares e pela mídia. Para que esse processo seja desencadeado, basta que, em vez de um conciliador como Lula, tenhamos um presidente de esquerda e de sangue mais quente, como, por exemplo, um Ciro Gomes.